E aí, tudo bem?
Se assim como eu, você tem mais de trinta anos e já fez alguma viagem antes da popularização do GPS, a situação a seguir talvez soe familiar.
Sua família percorre uma rodovia estranha por tempo demais, a estrada é precária e mal sinalizada, mas a pouca sinalização encontrada deixa claro: Vocês pegaram a saída errada.
Do banco de trás, você vê uma discussão irromper no veículo. Alguém, provavelmente o seu pai, diz que basta seguir as placas para conseguir voltar ao trajeto. Enquanto uma pessoa mais sensata, geralmente a sua mãe, pede que encostem no próximo posto de gasolina para pedir direções aos frentistas ou a outros motoristas mais familiarizados com a região.
Pois é, até pode haver alguma variação entre os personagens a depender da configuração de cada família, mas viajar de carro para um local desconhecido no fim do século vinte ou início do vinte e um costumava ter dessas coisas.
Hoje tudo isso parece cena de comédia dos anos 90, para viajar a um lugar estranho basta colocar no smartphone a localização desejada e seguir a voz passivo-agressiva do aplicativo. Privados de experiências traumáticas como estas, talvez os mais jovens se perguntem como a humanidade conseguiu chegar aos quatro cantos do planeta sem saber quando deveria realizar uma curva suave a direita para permanecer na mesma rodovia, ou pegar a segunda saída na rotatória em direção a Curitiba.
Para a sorte das antigas gerações, desde que os primeiros humanos começaram sua peregrinação a partir da África, nossa espécie desenvolve formas para se guiar, seja apenas ao olhar as estrelas, ou com a posterior invenção de instrumentos mais sofisticados como o Astrolábio, que determina a sua posição a partir de corpos celestes e a bússola, cuja agulha magnética aponta sempre para o norte.
De forma literal ou metafórica, a humanidade sempre procurou indicações do trajeto a seguir e debateu sobre o caminho a ser tomado. Seja em viagens de família, reuniões de condomínio ou casas legislativas. A invenção da imprensa e a comunicação de massa expandiu esse conversa a toda a sociedade. E coube aos comunicadores e empresas de mídia pautar a direção do debate público.
Para isso profissionais de imprensa recorrem a diversos tipos de fonte em busca de direção. Pois, é, até hoje a rotina de um jornalista é bem parecida com uma viagem de carro dos anos noventa. Ao abordar assuntos diversos, como economia, política, ou qualquer campo científico eles dependem das informações que conseguem à beira da estrada – ou de sua pretensão de saber o caminho – para traduzir ao público os conceitos complexos que formam nosso entendimento da realidade.
Um informante comum ao nosso jornalismo são os agentes do mercado financeiro, cujo humor é tratado como uma bússola capaz de indicar a direção que a economia de um país tomará a partir de determinadas decisões ou acontecimentos.
Até que faz sentido, afinal, não seria possível conseguir prestígio como analista de investimento ou gestor de fundos sem ler corretamente os movimentos do mercado.
Ou seria?
Você está lendo Linhas Cruzadas, uma newsletter que a cada duas semanas – mais ou menos – fala sobre tudo o que nos conecta ou separa, mesmo que para isso precise apelar para analogias, no mínimo, criativas.
Se preferir, você pode ouvir este texto pelo Podcast Cruzando Linhas, disponível em todas as plataformas.
Apesar de pôr vezes contarem com um status quase profético, não é raro que analistas financeiros caiam em vieses de seleção e, por vezes, sejam pegos de surpresa pelo surgimento de bolhas financeiras - negócios e títulos cujo otimismo exagerado não chega a se cumprir e, quando sua incapacidade de alcançar as expectativas ficam claras, perdem rapidamente seu valor.
Atualmente são os criptoativos que pautam o debate entre analistas de investimento e tecnologia. Parte deles ainda acredita no cumprimento das promessas do blockchain, das NFTs e das criptomoedas. Em sua capacidade de revolucionar a forma como negociamos títulos e utilizamos dinheiro, embora após mais de uma década não tenham chegado nem perto de cumprir seu alegado propósito. Exceto se considerarmos seu uso para transações obscuras como tráfico sexual, abuso de menores e contratação de assassinos de aluguel.
Enquanto isso uma tecnologia muito mais simples, como o Pix, é capaz de criar mudanças reais no status bancário e no uso do dinheiro dentro de um país, como o Guilherme Felitti demonstrou no podcast Tecnocracia número 54.
Embora duvide muito, eu não sou capaz de prever se os criptoativos algum dia cumprirão com seu propósito. Porém, mesmo que venha a acontecer, isso tampouco impedirá seus títulos de se tornarem uma bolha financeira e implodirem da noite para o dia.
Já vimos que a internet, com o uso do GPS, mudou a forma como viajamos, mas essa é só uma pequena parte do impacto que a rede teve em nossas vidas. Para bem ou para mal, nós nos hospedamos, compramos, lemos, negociamos, nos informamos e entretemos de formas completamente diferentes do que fazíamos há dez ou vinte anos.
Apesar disso, quem investiu em empresas de internet no ano de 1999 viu o valor de seus títulos derreterem pelos próximos anos.
Evento semelhante ocorreu na Inglaterra vitoriana, durante a Railway Mania, maior bolha financeira da história britânica. Animados com as promessas do recém surgido transporte ferroviário, milhares de empresas foram criadas e muitas ações emitidas para financiar a construção das estradas de ferro. O preço das ações subia constantemente e muitas pessoas investiram suas economias e até contraíram empréstimos na esperança de obter grandes lucros com os títulos.
A demanda por investimento levou à construção de linhas inviáveis e após uma recessão, muitas companhias ferroviárias foram para o buraco e com elas as economias de seus investidores.
Assim como a internet na virada do milênio, as ferrovias transformaram o mundo a partir do século XIX, mas isso não as impediu de formarem uma bolha financeira.
O acontecimento é narrado em um episódio do podcast Cautionary Tales chamado The Myth of the Million Dollar Tulip Bulb, ou em português O Mito da Tulipa de um milhão de dólares. Nele Tim Halford cita os autores William Quinn e John Turner para listar os elementos que formam uma bolha financeira.
Primeiro é preciso ser fácil de comprar e vender. Essa facilidade gera especulação, investidores que compram o título não pela tecnologia ou pelo desenvolvimento do negócio, mas simplesmente com o objetivo de revender futuramente com alto lucro.
O terceiro elemento, segundo os autores, é a facilidade de contrair empréstimos por conta de juros baixos. Em uma realidade de terceiro mundo eu citaria ainda a incerteza com a própria renda no futuro próximo, como incentivo à busca por empréstimos e ganhos rápidos. De uma maneira ou de outra, ao apostar com dinheiro alheio é possível lucrar ou perder tudo o que possui.
Estes elementos se encaixam na narrativa da internet ou das linhas de trem, mas também com o das luxuosas Birkin Bags ou com o próprio ouro ao longo da história. Estes, porém, não parecem perto de ver seus preços caírem, embora, ao contrário das tecnologias citadas, não possuam qualquer lastro econômico além da expectativa de investidores em seu valor.
A variação do valor de um investimento é um péssimo indicativo de sua importância futura. Seja ele uma nova tecnologia, um produto de luxo ou um país. Afinal, o preço de uma ação diz pouco sobre a viabilidade de uma empresa e muito sobre a expectativa que investidores tem na revenda deste título.
Então, quando jornalistas e outros comunicadores consultam analistas de investimentos para direcionar suas análises e reportagens econômicas, podem até pensar que consultam uma bússola, mas provavelmente estão seguindo uma biruta.
Normalmente utilizada em aeroportos e heliportos a biruta mede a velocidade e a direção do vento. Isso é muito útil para direcionar pousos e decolagens, ou mesmo indicar sua viabilidade. Porém, avião nenhum parte do aeroporto baseado na direção apontada pela biruta.
Assim como a biruta, analistas de investimento são, ao menos supostamente, competentes em saber se os ventos indicam a venda ou a compra de títulos. Se é hora de decolar, ou se é melhor manter seus investimentos em terra firme. Para qualquer análise que vá além disso eu tenho minhas dúvidas.
E para falar a verdade, nem quero discutir aqui o que um agente do mercado financeiro deveria saber ou não. Eu não sou economista e esse está longe de ser meu papel ou dessa newsletter.
O que eu questiono é o papel da mídia em buscar direções nos mesmos instrumentos que década após década indicam apenas a direção do vento e, em momentos de turbulência, apontam desesperadamente para qualquer lado.
Mais do que se consultar, veículos de comunicação costumam dar manchetes a qualquer prognóstico que venha de um gestor de fundos ou analista de investimento. Como a previsão abaixo, publicada antes do segundo turno das eleições de 2018.
Caso você não acompanhe a cotação da moeda americana, ela valia R$3,31 no início do mandato e R$5,30 ao fim do governo Bolsonaro.
Não se trata de cair em discursos fáceis de mídia manipuladora ou afirmar que gestores do mercado financeiro não devam ser ouvidos. Mas deixar claro que estes agentes possuem vieses, limitações e interesses ao publicar suas opiniões. Assim como os próprios comunicadores e canais de mídia.
Neutralidade não existe e é óbvio que Jornalistas, influencers e veículos tem direito às suas opiniões políticas e econômicas – desde que não atentem contra o estado de direito – afinal comunicadores não são bússolas cujo magnetismo os faz apontar sempre para a direção correta.
Ainda assim a função de direcionar o debate público exige a responsabilidade de entender para onde suas fontes apontam e o que os faz indicar tal direção. Sob o risco de seguir falando ao sabor do vento, enquanto acham que isso os levará a algum lugar.
Como sempre, obrigado pela leitura e até a próxima!