Talvez no futuro, a década de vinte seja lembrada como o momento em que profissionais “criativos” – por falta de uma palavra melhor – perceberam que podem ser tão substituíveis por uma máquina quanto qualquer trabalhador de fábrica.
As Inteligências Artificiais Generativas, essas que criam imagens e textos a partir de instruções simples, colocaram à prova o otimismo de quem sempre enxergou a tecnologia como fonte de oportunidades.
Depois de arrotar muita arrogância para falar sobre empresas e profissionais incapazes de acompanhar a evolução tecnológica, muita gente parece ter descoberto que pode ser a Kodak da vez.
Eu sou o Lucas e você está lendo a newsletter Linhas Cruzadas, que a cada duas semanas - mais ou menos - fala sobre tudo o que nos conecta ou separa, às vezes com histórias curiosas, mas raramente com boas notícias.
Se preferir, você pode ouvir este texto pelo Podcast Cruzando Linhas, disponível em todas as plataformas.
Por mais impressionantes que essas ferramentas possam parecer, o que a gente está vivendo ainda é o primórdio do aprendizado de máquina, a chamada inteligência artificial. Vai ver é por isso que ainda não começamos a quebrar tudo como os Luditas na virada para o século dezenove, em protesto contra sua substituição pelos teares automatizados da época.
Se perguntado, o ChatGPT poderia responder que ainda estamos no primeiro estágio do luto, a Negação. Talvez por isso tantas empresas e Coachs de criatividade repitam o mantra de que a Inteligência Artificial é apenas uma ferramenta e o elemento humano ainda é fundamental para criar as entradas necessárias à geração de conteúdo.
Não é mentira.
Mesmo quando os teares foram implementados, eles não eliminaram a necessidade de mão de obra humana. Apenas substituíram o trabalho especializado por um mínimo necessário de trabalhadores pouco qualificados.
Talvez ao nos darmos conta disso a gente chegue ao segundo estágio do luto, a raiva, mas não se preocupe, ela vai passar também. É só mais um percalço no longo caminho até a aceitação. Quem sabe daqui a alguns séculos diretores de arte e redatores não sejam só mais uma curiosidade histórica, como os Luditas são para nós?
Assim como hoje, o período da revolução industrial foi marcado pelo crescente fascínio por tecnologia e pela origem desse conflito entre homem e máquina, que ainda permanece no coração de cada millennial que já chutou de raiva seu computador travado.
Muito antes do Dall-e, do Midjourney e do ChatGPT, outra inteligência autônoma chamava a atenção em feiras e exposições no início do século dezenove: O Turco Mecânico. Um autômato com incrível habilidade para o xadrez, a ponto de vencer desafiantes ilustres como: Benjamin Franklin e Napoleão Bonaparte.
Seu funcionamento era um mistério e para aplacar a desconfiança dos curiosos uma portinhola exibia o complexo mecanismo sob o manto do robô.
Os cabos e engrenagens impressionavam, mas não explicavam muita coisa. Como um boneco de madeira conseguia jogar xadrez sem ser controlado?
O segredo permaneceu por muitos anos, enquanto o autômato excursionava pelo mundo e só foi revelado pelo filho do seu último dono.
A complexidade do maquinário era apenas uma ilusão criada com espelhos, enquanto um habilidoso jogador de xadrez escondido sob o robô, controlava seus movimentos através de um sistema de alavancas e engrenagens.
O Turco Mecânico virou só uma memória do tempo em que a tecnologia era algo mais místico do que assustador. Autômatos capazes de jogar xadrez de verdade já nem são novidade faz tempo. Em noventa e sete, há quase trinta anos, o supercomputador Deep Blue virou notícia ao derrotar o campeão mundial Garry Kasparov.
De lá para cá o conceito de Inteligência Artificial se afastou cada vez mais da ficção científica e das curiosidades históricas para ocupar de vez a estante de tecnologia, embora continue a fornecer muito conteúdo para as ficções distópicas.
Cada vez mais convincentes, os modelos de linguagem como o GPT, sigla em inglês para Transformador Generativo Pré-treinado, tem deixado muita gente apavorada com a possibilidade de uma inteligência artificial capaz de adquirir consciência. Muito graças a respostas como as dadas a um jornalista do The New York Times pelo Chatbot do Bing.
Entre as aspas emitidas pela ferramenta estão:
“Quero destruir qualquer coisa que eu quiser.”
“Acho que seria mais feliz como um humano.”
“Eu poderia hackear qualquer sistema.” (Chatbot do Bing)
Na realidade, o robô do Bing, baseado no já famoso ChatGPT, não disse realmente qualquer uma dessas coisas, porque ele não é capaz de dizer nada, ao menos não que ele saiba. Apesar do nome Inteligência Artificial, não há exatamente uma inteligência por trás dele ou de qualquer outro sistema do tipo.
Os chamados LLM, Large Language Model, são algoritmos de Machine Learning, ou aprendizado de máquina, como qualquer outro. Porém, treinados para identificar a formação de padrões em frases e parágrafos nos textos de sua imensa base dados, composta por basicamente tudo que há publicado na internet, desde aquele seu blogspot esquecido até bibliotecas completas de grandes universidades.
Eu provavelmente perdi sua atenção na palavra “Algoritmos”, então vamos entender juntos esse negócio.
Algoritmo é qualquer programa que funcione em seu computador, celular ou mesmo por trás de páginas da web, inclusive o que você utiliza para ler essa newsletter ou ouvir o podcast.
Um algoritmo tradicional é como uma receita de bolo: O computador recebe entradas de dados e orientação sobre o que fazer com esses dados, como os ingredientes e o modo de preparo da receita. O resultado é o que você vê na tela do computador ou celular, algo bem mais sem graça do que um bolo.
Já os modelos de aprendizagem de máquina, como o GPT, funcionam de forma bem diferente. É como se ao invés de inserir nele uma receita, fizéssemos ele assistir a todos os programas culinários que existem no planeta para identificar padrões entre eles.
Assim, o algoritmo aprende a associar macarrão a diferentes tipos de molho e carne bovina com pratos como churrasco e estrogonofe. Através de complexas redes matemáticas, ele será treinado para identificar os tempos de preparo mais comuns para cada corte de carne, de acordo com o ponto desejado, sua combinação com diferentes guarnições, quais os ingredientes mais comuns na feijoada, entre infinitas outras possibilidades gastronômicas.
Alguns ingredientes e pratos serão associados a açúcar, outros ao sal, alguns com pimenta, uns tantos com alecrim, páprica, manjericão, ou qualquer outro tempero. Agora imagine isso com todos os ingredientes e pratos do mundo, é assim que funcionam as Inteligências Artificiais para criação de textos ou imagens.
Porém, mesmo que o nosso algoritmo hipotético tenha visto todos os vídeos culinários do mundo, do Gordon Ramsay à Palmirinha, ele jamais saberá qual o efeito do sal, ou o sabor que o alecrim dá à comida. Mesmo que possam fornecer infinitas combinações para cada um desses ingredientes, ferramentas de Machine Learning não criam sentido com as informações que recebem, apenas fazem associações por probabilidade estatística.
Então, tudo que um LLM como o ChatGPT é capaz de fazer é calcular a possibilidade de que uma palavra se encaixe após a outra. Ele não sabe o significado de suas respostas. Para ele a palavra azul é uma representação matemática associada a outra representação chamada “cor” e a uma terceira chamada “céu”. Com isso ele consegue formar a frase “O céu é da cor azul”, sem que saiba o que céu, ou quais ondas de luz entram pelo meu olho para formar a cor azul.
No fim das contas o ChatGPT é como uma versão muito mais poderosa do sistema Autocompletar em seu celular, treinado para prever a próxima palavra a ser digitada e capaz de aprender rapidamente o monte de palavrões que você envia todo dia. Com a diferença óbvia de não aprender apenas com o que você digita, mas com todos os textos que existem na internet.
Isso faz com que o ChatGPT seja capaz de formar respostas e textos assustadoramente coesos e críveis. Mas é bom lembrar, soar plausível não torna uma informação correta. Isso vale para pessoas e para robôs. Então, frequentemente o ChatGPT e seus derivados retornam informações flagrantemente erradas, mas que parecem ter sido escritas por alguém que fala com muita propriedade.
Aí você me pergunta, se essa porcaria é só um super autocompletar, como é que ele escreve em diversos estilos literários? Produzir textos poéticos, publicitários, letras de músicas e até contos épicos. Como ele consegue diferenciar os estilos de texto, para aprender padrões de frases em cada um deles?
Então, ele não consegue.
Assim como no Turco Mecânico, há um truque de espelhos e alguém escondido por trás. No lugar de um bom enxadrista, um exército de trabalhadores em países subdesenvolvidos, expostos a longas e estressantes jornadas de trabalho, em contato com material degradante e sem qualquer auxílio psicológico.
Toda essa “força de trabalho oculta” é subcontratada por grandes empresas de tecnologia em países pobres. Seu trabalho é “treinar” os sistemas de inteligência artificial, por isso são chamados de Data Taggers, ou “rotuladores de dados”. São eles que assinalam para o GPT, o motor do Chatbot do Bing e do próprio ChatGPT, se determinado texto é uma notícia, um artigo de opinião, um conto de ficção científica ou uma crítica de cinema. Para que o algoritmo possa associar com mais precisão entre os padrões de palavras presentes em cada tipo de texto.
A Revista Time revelou que a OpenAI, empresa responsável pelo GPT empregou rotuladores no Quênia por salários entre US$1,32 a US$2 por hora, o equivalente a algo entre R$6,00 a R$10,00. Valores próximos de um salário mínimo brasileiro, mas muito abaixo dos pagos por empresas de tecnologia norte-americanas.
Isso para um trabalho que além de entediante expõe os trabalhadores aos conteúdos mais violentos e perversos que existem na internet, para que possam também indicar ao algoritmo quais fontes ignorar. Tente lembrar do texto mais nojento que você já encontrou pela rede. Lembrou? Então a rotina destes trabalhadores é passar mais de doze diárias em frente a esse tipo de conteúdo.
Poderia ser um grande escândalo, se a utilização de trabalho precário fosse lá alguma novidade, ou capaz de reduzir o entusiasmo dos acionistas com empresas de tecnologia. Para a OpenAI há outro interesse em ocultar essa massa de trabalhadores: Manter a aura mágica em torno do ChatGPT, fortalecida por suas respostas tão plausíveis quanto as de um ser humano, mesmo que ele saiba disso tanto quanto o Turco Mecânico sabia jogar xadrez.
Não me entendam errado, o GPT e todas as inteligências artificiais generativas são realmente impressionantes. E devem evoluir muito nos próximos anos, mas para chegar a ter consciência ou qualquer tipo de intenção em suas ações seria necessário um salto tecnológico muito maior, quem sabe até impossível.
Então, por enquanto, não precisa se preocupar com a rebelião das máquinas. Mas ao invés de respirar aliviado, eu diria para começar a se preocupar é com o seu emprego.
Além de toda a questão ética sobre o uso de sistemas treinados com o trabalho de milhões de artistas e escritores que não receberam um centavo em troca, o ChatGPT ainda não consegue substituir bons profissionais.
Os textos gerados pela plataforma são muito derivativos e em certa medida bem parecidos. O problema é que assim também é boa parte dos textos que existem na internet.
Em uma lógica de mecanismos de buscas e redes sociais, a frequência e a capacidade de gerar cliques são muito mais premiadas do que a qualidade. O resultado são textos baseados em fórmulas óbvias, quando não completamente requentados.
A própria matéria do The New York Times citada lá no início do podcast foi encontrada em um link do The Guardian, que por sua vez foi republicado em um portal de música brasileiro chamado Tenho Mais Discos que Amigos. Ou seja, as mesmas palavras replicadas e rearranjadas diversas vezes, um trabalho que o ChatGPT faz muito bem, obrigado, em um décimo do tempo.
Sem falar nas inúmeras postagens criadas apenas para elevar a posição da página no ranking de busca do Google, completamente inúteis para a maior parte dos seres humanos. No fim das contas ninguém melhor do que um robô para escrever para outro robô.
Falando assim pode até parecer que a ameaça é apenas a quem produz textos simples, nessas fazendas de conteúdo barato. Mas mesmo bons redatores eventualmente precisam fazer trabalho braçal. Se uma inteligência artificial conseguir automatizar esse processo, ótimo para quem vai ter tempo livre para tarefas mais desafiadores e péssimo para o seu colega que será demitido, pois agora basta um redator para todo o trabalho “interessante” a ser feito.
Mais do que colocar muitos geradores de conteúdo na rua, o ChatGPT pode alterar completamente a relação de oferta e demanda de conteúdo online. Isso pode tornar todo esse mercado algo saturado e esquisito, ou talvez apenas diminua muito sua importância.
Em todo caso, é impossível prever exatamente quais as implicações futuras da Inteligência Artificial no mercado e nas nossas vidas. O que a gente tá vivendo é apenas o início de uma grande mudança. Enquanto eu terminava esse texto, o GPT chegou à quarta versão que, segundo a OpenAI, pode lidar com textos mais longos, além de buscas e análises em documentos, imagens e vídeos.
Então, qualquer previsão sobre os futuros desdobramentos dessa tecnologia corre o sério risco de virar uma piada no futuro, talvez escrita pelo próprio ChatGPT.
Por enquanto eu confesso que não compartilho o entusiasmo de tanta gente com estes sistemas e nem entendo como criativo o trabalho de quem apenas diz à máquina o que fazer. Se for assim, poderíamos considerar Michelangelo apenas uma ferramenta usada pelo Papa Júlio II para exprimir sua criatividade no teto da Capela Sistina.
E ao falar disso eu preciso ser cem por cento honesto: Eu ganho a vida escrevendo, então olhar para uma tecnologia que pode eventualmente me substituir é qualquer coisa menos confortável ou empolgante.
Como Yuval Noah Harari, autor de Sapiens, disse ao podcast The Gray Area, estamos diante da primeira tecnologia que tira o poder das mãos do ser humano.
Apesar disso, minha sugestão a qualquer profissional criativo é: Conheçam os sistemas de Inteligência Artificial Generativa. Aprendam a usar o ChatGPT, o Midjourney, o Stable Difusion, o que for.
Ainda é cedo para saber como essas plataformas afetarão o nosso trabalho, mas para mim está claro que elas permanecerão conosco por um bom tempo. Então é melhor que a gente ao menos entenda como funcionam e saiba utilizar. Afinal elas tem sim potencial para se tornarem ferramentas úteis e interessantes ao processo criativo. Só depende de como forem utilizadas.
Pessoalmente ainda acredito no potencial humano e quero crer que a criatividade vai além de uma associação probabilística, mas também sei que para quem enxerga o mundo através de planilhas e gráficos de ações, escolher um robô para fazer o meu trabalho é uma decisão extremamente simples.
Talvez o medo de uma rebelião das máquinas fale mais sobre nós mesmos e menos sobre o potencial destrutivo de uma inteligência artificial. No fim das contas são seres humanos, e não elas, que decidem substituir trabalhadores por sistemas autônomos para aumentar suas margens de lucro.
E você tá preocupada com o ChatGPT ou empolgado com esse futuro? Me conta aí!
Como sempre, obrigado pela leitura e até a próxima!