E aí, tudo bom?
Todo mundo que já passou da adolescência descobriu, de uma maneira ou de outra, que a vida é complicada e não tem ninguém para resolver nossos problemas além de nós mesmos. Tem contas a pagar, responsabilidades, família, cada dia é um novo rolo para resolver e tudo que a gente quer é uma solução capaz de desenrolar os nós da existência.
E não é que às vezes aparece? Uma oferta, uma possibilidade feita sob medida, que de tão simples, fácil e eficiente parece até mentira. E geralmente é mentira mesmo.
Tem uma máxima, atribuída ao jornalista americano Henry Louis Mencken, que é mais ou menos o seguinte:
“Para todo problema complexo existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada.”
E bom, faz sentido, o mundo é complicado, pessoas são complicadas. Poucos problemas possuem uma solução simples e definitiva. Seja em nossa vida pessoal, ou na sociedade.
Até aí tudo bem e falando assim é até meio óbvio, né?
Mas para cada um desses problemas tem sempre alguém pronto a propor, ou até se auto enganar, com uma solução simples e tentadora, geralmente inútil e às vezes até nociva.
Muitas vezes a suposta solução é simplesmente um golpe, que aos olhos de fora pode parecer incrível de tão tosco, mas ainda assim capaz de arrebanhar gente desesperada.
Assim surgem as curas escondidas para o câncer, o juiz capaz de “vencer a corrupção” através de métodos ilegais, as soluções que parecem óbvias para o trânsito, a violência, a educação, a saúde e, claro, as cada vez mais frequentes fraudes de investimento com promessas de ganhos garantidos para quem se enrolar em empréstimos para entrar no esquema.
Como é que a gente ainda cai nesse tipo de coisa?
Então, eu sou o Lucas e isso é o que a gente vai tentar entender hoje no Linhas Cruzadas, uma newsletter sobre os fios que nos conectam e as fronteiras que nos separam, enfiando a cabeça nos problemas complexos para escapar das soluções simples. Embora geralmente acabe sem solução nenhuma, mesmo.
A história das soluções milagrosas tem sua era de ouro no século XIX. Se pudéssemos viajar no tempo para a Feira Mundial de Chicago em 1893 encontraríamos um sujeito excêntrico até para os padrões da época.
Clark Stanley grita para a multidão com suas roupas de cowboy, lenço colorido, longos cabelos e uma combinação de barbicha e bigode capaz de dar inveja a qualquer hipster. Mas ninguém presta atenção nesses detalhes, todos estão com os olhos fixos na cascavel enrolada em seu pescoço, e nas demais serpentes espalhadas pela tenda às suas costas.
O cowboy narra a todos como obteve os segredos de cura ancestral do povo indígena Hopi, com quem supostamente viveu por anos. E os publicitários falando de storytelling como se fosse novidade.
Após contar sua história Clark Stanley asfixia uma das serpentes com éter e a atira em uma panela com água fervente. Conforme o animal é cozido, a gordura se solta do corpo e passa a flutuar na superfície da água. De lá ela é recolhida e misturada em um pequeno frasco. A substância é então vendida para os visitantes como “Clark Stanley Snake Oil Liniment”, que em português seria algo como “Unguento de óleo de serpente de Clark Stanley.” Como você deve imaginar, o óleo era supostamente capaz de curar muitas doenças.
A história do óleo de serpente é contada no livro “The Attention Merchants” de Tim Wu, que pode ser traduzido como “Os mercadores da atenção”. Ele era só mais um entre os diversos bálsamos e elixires vendidos à época. O truque era utilizar substâncias como ervas ou entranhas de animais e apelar a um suposto conhecimento secreto ancestral de povos exóticos, algo parecido com o que tem acontecido com técnicas e produtos orientais nas últimas décadas.
Clark Stanley prometia curar reumatismo, dores no nervo ciático, contração muscular, lumbago, dor de dente, entorses, inchaços e mais uma série de problemas. E se você estiver achando isso meio ousado, precisa conhecer outro cara, o Dr. James William Kidd, que dizia possuir o elixir da imortalidade.
Muito mais do que um storytelling envolvente e performances impressionantes, homens como Clark Stanley prometiam a seus clientes solucionar as maiores angústias humanas, a enfermidade e a morte.
É bom lembrar que estamos falando de um momento histórico em que boa parte das doenças que hoje são resolvidas com um pulo na farmácia ou no posto de saúde eram ameaças reais, sem perspectiva de cura.
A medicina da época também não ajudava muito. Distantes do conceito de higiene, os doutores vitorianos se julgavam dignos demais para lavar suas mãos e assim realizavam partos após tratar infecções contagiosas e cuidavam de doentes com os restos de um cadáver dissecado embaixo das suas unhas.
Para os pacientes que sobrevivessem às doenças espalhadas pelos médicos, restava o tratamento com substâncias como o Calomel, um purgante a base de mercúrio. Sim, o conceito de cura no século XIX envolvia fazer seu paciente colocar as tripas para fora, eles acreditavam que assim eliminariam as toxinas do corpo.
O problema é que além de não curar porra nenhuma, perdoem meu francês, o mercúrio é uma substância tóxica, capaz de causar danos irreversíveis à pele e outros tecidos com os quais entra em contato. O que acontecia com frequência.
Pois é, melhor entrar logo na fila para comprar esse óleo de cobra. Até porque se os medicamentos alternativos não funcionavam, eles eram muito bons em “parecer funcionar”. Conforme conta Tim Harford em um episódio recente do podcast Cautionary Tales: Além de ervas e óleos, muitos desses bálsamos levavam na composição substâncias como álcool ou pimenta, que modificam a temperatura no corpo e causam a sensação e que “algo estava acontecendo.”
Quanto à cura das doenças. Bom, existe o efeito placebo e em boa parte dos casos de infecção o próprio corpo faz o trabalho de eliminar o parasita. Se isso acontecia logo após tomar alguma mistura indigesta era difícil não criar uma noção de causa e consequência. Nosso cérebro se concentra intuitivamente nas evidências percebidas e só considera outros fatores se fizermos um esforço ativo para isso, como demonstrado no livro “Rápido e Devagar” do psicólogo israelense Daniel Kahneman. (Não confundir com Walter Kannemann, zagueiro do Grêmio.)
Mais do que a sensação de cura, esses medicamentos alternativos ofereciam uma solução simples e rápida para algo em que os especialistas da época falhavam em dar uma resposta satisfatória. Muito parecido com o que aconteceu recentemente durante a pandemia de Covid19.
Enquanto as autoridades de saúde ainda estavam aturdidas em busca de soluções para frear o avanço da doença e tratar os pacientes que lotavam UTIs, supostas curas duvidosas começavam a surgir, muitas patrocinadas por políticos populistas de extrema-direita. Desde medicamentos para malária e vermes, até ingestão de desinfetante e aplicação de ozônio por uma sonda anal. Para muitos estes tratamentos pareciam funcionar, simplesmente porque a Covid19 não era fatal para todos e na maior parte das vezes o próprio sistema imunológico respondia à doença.
Não foi o caso, porém, do médico Guido Céspedes, criador do “Kit Covid” com medicamentos comprovadamente ineficazes contra Covid19, como hidroxicloroquina e ivermectina, que morreu da doença aos 46 anos.
Mas não é só durante o caos de uma pandemia que as autoridades de saúde falham em tratar das queixas de pacientes, muitas vezes por limitação da medicina, mas em tantas outras por puro descaso com gente que esperou horas por uma consulta, mesmo em hospitais privados, e foi atendida por poucos minutos antes de ser dispensada com uma receita ilegível sem grandes explicações.
Não é surpresa que pacientes desencantados prefiram apelar para coisas como homeopatia, parapsicologia ou cura pela imposição das mãos. O “médico” homeopata ouve seu paciente por uma hora antes de receitar uma substância que é basicamente água, mas isso pouco importa para o paciente que se sentiu acolhido e mais esperançoso com seu prognóstico.
E isso não acontece só na medicina. A decepção com as respostas dadas por autoridades estabelecidas nos joga nas promessas de solução de fraudadores e políticos populistas. Como o punitivismo enquanto resposta para a falta de confiança na garantia de justiça e segurança, a eleição de “outsiders” como resposta a um sistema político percebido como corrupto e esquemas de retorno rápido por meio de apostas e investimentos de risco, em um contexto de falta de perspectiva de ganho de renda no futuro próximo.
São muitos os óleos de serpente, tão ineficazes quanto irresistíveis em momentos de desesperança. E a gente até pode achar que isso só funciona com a tia que se entope de remédio homeopático, o seu primo que pegou empréstimo para investir em NFTs, ou com o vizinho que foi para o hospital levar ozônio no rabo, mas a depender das circunstâncias podemos ser tão suscetíveis quanto eles, não importa o quão bem-educados, inteligentes e informados somos.
O crítico de arte Abraham Bredius descobriu isso de uma das piores formas. Em 1937, aos 82 anos, ele aproveitava sua aposentadoria, após desmascarar inúmeras falsificações de artistas como Rembrandt e Vermeer, nos quais era especialista.
Naquele ano, conforme conta Tim Harford no livro The Data Detective, Abraham recebeu a visita de um jovem advogado que o pediu para avaliar um suposto quadro recém-descoberto de Vermeer, o “Cristo em Emaús”.
Encantado com a pintura, o especialista a descreveu como a Obra Prima do artista. Suas palavras foram: “Bem diferente de suas outras pinturas e, no entanto, um Vermeer em cada polegada.”
Como você já deve imaginar, o quadro era forjado e com o aval de Abraham Bredius todo o mundo na arte caiu no golpe. A falsificação foi vendida pelo equivalente a dez milhões de dólares atuais ao Museu Bojimans em Roterdam, onde permaneceu exposto pelas próximas duas décadas.
Ao comparar um Vermeer genuíno, como o clássico “Moça com Brinco de Pérola” com a falcatrua, fica difícil entender como um dos maiores especialistas na obra do pintor foi ludibriado, para compreender a genialidade do golpe é preciso olhar para outro lugar.
O Cristo em Emaús não era apenas mais um Vermeer reconhecido pelo crítico, mas a confirmação de uma hipótese que ele criara há muito tempo sem jamais conseguir comprovar. Bredius acreditava que Vermeer teria viajado para Itália na juventude onde conheceu e foi inspirado pelas obras de Caravaggio. Sua, até então, suposição, era confirmada por cada detalhe do Cristo em Emaús.
A solução ideal para uma angústia e a evidência de que sempre esteve certo. Ser um especialista só serviu para encontrar na obra todos os sinais que apoiavam a sua conclusão. O golpe só seria revelado duas décadas depois, quando o falsificador confessaria ter forjado diversos Vermeers, para se livrar da acusação de vender obras de arte para políticos nazistas.
“Um tolo instruído é mais tolo do que um ignorante.”
(supostamente Molière)
Isso vale para críticos de arte, cientistas, jornalistas e obviamente todos nós que nos julgamos bem-informados.
E aqui cabe um relato pessoal. Assim como muita gente, eu passei os últimos quatro anos em um estado de angústia ao ver o desmantelamento de instituições importantes como o SUS e o Ibama, além do crescente armamento da população e a ascensão do autoritarismo, que provocou diversos episódios de violência política durante as últimas eleições.
Toda vez que uma nova notícia surgia eu acreditava que aquele seria o fato capaz de reduzir a popularidade do presidente, o argumento perfeito, a bala de prata que o tiraria do poder. Mas nada adiantou.
Foram anos com recordes de desmatamento, denúncias de corrupção, descaso criminoso com a pandemia e ruptura com o ministro mais popular do governo (que retornaria com o rabo entre as pernas para o colo do presidente durante as eleições). Mas sem grandes variações na popularidade do governo, que quase nunca caía abaixo de 30%.
Há motivos diversos para essa resiliência e seu desempenho nas últimas eleições: Uma grande estrutura de comunicação, a máquina do estado nas mãos e mesmo uma grande onda de extrema direita que ainda ameaça o mundo. Eu sabia de tudo isso, mas segui acompanhando o noticiário como se a qualquer momento alguma solução pudesse surgir.
Por que eu fiz isso?
Nós vítimas do autoengano ou de falcatruas somos bem parecidos. Não por conta da nossa personalidade, inteligência ou conhecimento em alguma área, mas pela vulnerabilidade emocional provocada por um momento de desesperança ou incerteza.
No livro The Confidence Game, que em português seria “O Jogo da Confiança”, Maria Konnikova demonstra como pessoas que se sentem solitárias, isoladas, que acabaram de perder o emprego, passaram por um divórcio ou outra grande mudança na vida, sofreram algum acidente ou enfrentam problemas econômicos possuem maior probabilidade de cair em alguma fraude.
Uma vítima de golpe não é necessariamente trouxa ou gananciosa, mas basicamente alguém que passa por um momento de instabilidade na vida. E isso ocorre mesmo quando o golpe não tem qualquer relação com a causa dessa instabilidade. Pessoas em dificuldades financeiras caem com mais frequência em golpes que não tem nada a ver com dinheiro.
E se tem algo que simboliza o nosso tempo é o quanto nos sentimos emocionalmente instáveis. A ponto de termos como ansiedade deixarem de ser diagnósticos médicos para se tornarem descrições banais de como muita gente se sente ao longo do dia.
Vivemos no que o filósofo Byung Chul-Han chamou de Sociedade do Desempenho. Uma estrutura social que exige diariamente que sejamos, tenhamos e queiramos mais.
Sobre as necessidades primárias, como fome, saúde e descanso, foram adicionadas as exigências por um corpo ideal, ganhos constantes de patrimônio, desenvolvimento intelectual ininterrupto, entre outras. Os algoritmos retroalimentam essa busca ao comparar o resultado idealizado dos demais com as nossas falhas. Até o sono agora deve ser avaliado e possivelmente reprovado.
Quem consegue dormir assim?
Somos invariavelmente incapazes de alcançar todos esses ideais e vivemos com a angústia de não estar à altura desse suposto potencial.
Como a Aline Valek disse em uma newsletter recente:
“[...]não importa o que façamos. Ainda não chegamos lá. Ainda não foi dessa vez. As métricas esfregam na nossa cara que o que conseguimos é pouco.”
Mesmo para quem alcançou o topo de sua profissão, ou seja, “chegou lá” de acordo com os padrões estabelecidos, o sucesso só é suficiente se for permanente. Após ser campeão da NBA em 2021, o jogador Giannis Antetokounmpo foi questionado nos últimos dois anos se as seguintes temporadas encerradas em eliminações foram “fracassos” em sua carreira.
Sua resposta é digna de nota:
“Eric, você consegue ser promovido no seu trabalho todo ano? Então todo ano seu trabalho é um fracasso? A cada ano você trabalha em direção a um objetivo. São passos para o sucesso. Michael Jordan jogou por 15 anos, ganhou 6 campeonatos. Os outros 9 anos foram um fracasso? É isso o que você está me dizendo? Essa é a pergunta errada. Não há fracasso no esporte. Há dias bons, há dias ruins. Ora é a sua vez, ora não é. Você não ganha sempre. Às vezes outra pessoa vai ganhar.”
* Eu também roubei a tradução dessa resposta da newsletter da Aline.
Se só há espaço para um campeão, onde no mundo a gente vai enfiar tantos “fracassos” esportivos? Mesmo em outras profissões o sucesso é um veículo de poucos lugares, afinal não há destaque quando todos se sobressaem. Para os demais resta a angústia de não atingir o melhor desempenho, uma sensação transformada em mercadoria por muita gente com algum conforto ou esperança para oferecer.
Se o óleo de serpente prometia a cura imediata de qualquer enfermidade, os elixires atuais são as promessas de sucesso sem esforço.
São aqueles aparelhos que vibram para supostamente tonificar os músculos sem precisar levantar da cadeira, shakes dietéticos para secar a barriga, sucos detox para expurgar a culpa dos nossos excessos, o golpe do trabalho remoto com ganhos de mais de R$5.000,00 semanais por poucas horas de trabalho, os métodos revolucionários para aprender um idioma, escrever um livro, melhorar sua resistência na corrida. Sem falar em um dos termos da moda o Growth Hacking, as trapaças para vencer na internet, conseguir seguidores, ganhar popularidade, engajamento, visitas, leitores, é só escolher.
Tudo simples, tudo rápido, tudo garantido. Quem não vai querer?
Ainda mais que a outra opção é sentar a bunda e trabalhar, estudar ou ter a disciplina para se exercitar com frequência. Sem garantias de que vai funcionar, com a necessidade de persistir em um processo lento, trabalhoso, doloroso, por vezes ingrato.
Ninguém tem tempo para isso, eu quero publicar meu livro e fazer sucesso agora.
Só tem um problema, né? Se esses métodos funcionassem tão bem, todo mundo seria rápido, eficiente, potente, popular e bem sucedido. E talvez através dos filtros do Instagram pareça mesmo que todo mundo seja assim, mas quer saber? Eu aposto um braço que tá todo mundo igual à gente, cansado, ansioso, preocupado e tentado a adquirir uma cura milagrosa para essa angústia.
E aqui eu talvez pudesse terminar com uma lição, falar sobre confiar no seu processo, persistir, não buscar atalhos, essas coisas. Mas a verdade é que a vida eventualmente nos dará uma rasteira capaz de tornar os óleos de serpente uma possibilidade tentadora.
Quando a esmola é demais o santo desconfia. Mas ninguém aqui é santo, então o melhor que podemos fazer é ficarmos espertos, não acharmos que estamos imunes e sermos mais generosos com quem eventualmente é enganado.
Afinal até mesmo saber disso não nos garante nada, a não ser que alguém conheça um método inédito para manter a estabilidade emocional e resistir às soluções fáceis.
Como sempre, obrigado pela leitura e até a próxima!
Ah, se puder, me conta o que você achou dessa newsletter, quero muito ouvir você aí do outro lado da linha!