E aí tudo bem?
Se a gente parar pra pensar no amanhã, a resposta talvez seja não.
O futuro nunca pareceu tão incerto quanto é agora. Mudanças acontecem rapidamente. Mal saímos de uma pandemia (saímos, né?) e uma nova tecnologia desponta com a promessa de modificar as condições de trabalho (não necessariamente para melhor), enquanto isso grandes potências mundiais esticam a corda além do razoável e nossas famílias são divididas por um grupo ideológico extremista em torno de um líder autoritário.
Tudo que eu falei diz a respeito aos dias atuais, mas poderia muito bem ser sobre qualquer momento do século XX. Revoluções tecnológicas, culturais, grandes guerras mundiais, ameaça nuclear são apenas parte das confusões de um século bem movimentado. Mas que ao ser relembrado, seja em nossas memórias ou seriados e programas de TV, ganha um ar nostálgico, de um tempo mais seguro e previsível.
Essa sensação de que o passado é mais ordeiro e tranquilo é culpa de dois sacanas.
Um deles se chama viés de exposição. Seja por sua relevância, ou apenas para caçar cliques, a maior parte das notícias que vemos são negativas. Mais do que isso, chegam a ser ultrajantes: Guerra, fome, corrupção, massacres, é difícil não ter a sensação de que o mundo tá indo para o buraco.
Além da exposição, nós damos mais peso a expectativas negativas e isso tem uma razão evolutiva: Organismos que davam prioridade às ameaças costumavam ter mais chances de sobreviver até a idade de reprodução do que aqueles que se empolgavam com qualquer oportunidade de ganho sem medir os riscos.
Por outro lado, apesar de toda a atenção dada a essa expectativa ruim. Quando elas se tornam recordações, as lembranças negativas costumam se apagar mais rápido de nossa mente do que as positivas, este efeito se chama memória enviesada.
Pois é, Caetano, não é só a vida que é de viés, nossa visão do mundo também.
Some o viés de exposição à memória enviesada e pronto: As lembranças da década de 80, um período de ameaça nuclear iminente, ganham contornos tranquilos, até inocentes.
Porém, mesmo que o futuro seja incerto simplesmente porque é assim que ele sempre foi, isso não torna essa angústia menos importante ou perturbadora. Também não nos impede de tentar entender o que nos cerca e saber o que de fato está para acontecer.
Será que há um jeito certo de tentar prever esse futuro, ou ao menos diminuir a nossa angústia?
Então, eu sou o Lucas e é sobre isso que vamos conversar hoje no Linhas Cruzadas, uma newsletter que tenta desatar os nós dos fios que nos conectam, nem que seja um de cada vez, para assim, quem sabe, atravessar as fronteiras que nos separam.
O negócio é o seguinte: Diante da incerteza, cada um de nós se volta para alguma forma de entender o mundo e, quem sabe, descobrir o que nos espera.
Há quem observe as avaliações e previsões de agentes do mercado, como já falamos a algumas semanas, em um texto que tem muito a ver com a conversa de hoje.
Outros buscam um pouco mais de coerência com a realidade e preferem se guiar pelo movimento dos astros, a sabedoria das cartas, as linhas das mãos, enfim, tem para todo gosto.
E, claro, há quem estude um assunto a fundo ou busque a análise de especialistas e suas previsões quanto aos desfechos de impasses geopolíticos e econômicos. Costuma ser o meu caso, talvez também seja o seu e, diante das outras opções expostas, parece ser mesmo escolha mais razoável, certo?
Bom, quem vai te responder isso não sou eu, mas sim um psicólogo canadense chamado Philip Tetlock. Em 1987 ele começou um estudo que faria muito palpiteiro passar vergonha. Tetlock compilou previsões de 284 especialistas em análise e aconselhamento político e econômico.
Tanto em suas áreas de atuação quanto em questões nas quais possuíam menos conhecimento. Após dezoito anos de espera pelo resultado de mais de 27.500 previsões ele publicou o livro Expert Political Judgement e bom, digamos que os especialistas falharam miseravelmente nas previsões, tanto em suas áreas de conhecimento quanto naquelas em não eram especializados.
E por falhar miseravelmente eu quero dizer que sua taxa de acerto foi inferior à de um macaco tirando cara ou coroa ou de um cachorro prevendo resultados de basquete.
E se a coisa tá feia para os especialistas, ainda piora. Eles não só erravam como relutavam em admitir que haviam se equivocado, ou simplesmente faziam a egípcia e diziam ter esquecido das previsões que erraram.
Muito bonito pra cara deles, né? Mas antes de achar que esses analistas são um bando de picaretas, calma, provavelmente eu e você já fizemos isso em vários momentos sem perceber e tal qual nossos amigos especializados em palpite furado, também somos incapazes de lembrar.
Isso acontece por conta de um fenômeno chamado Falácia Narrativa, proposto pelo autor, estatístico e analista de riscos Nassim Taleb em seu livro “A Lógica do Cisne Negro”. Falácia Narrativa é a forma como as lembranças moldam nossa visão de mundo e expectativas quanto ao futuro, ela é um efeito colateral da nossa tentativa constante de fazer o mundo ter sentido.
Grandes batalhas, sucessos comerciais, conquistas esportivas, a história de feitos impressionantes privilegia os highlights, os melhores lances do jogo, os grandes erros ou acertos estratégicos, mas deixa de fora os pequenos equívocos, o passe errado na intermediária, o arremesso de três pontos do primeiro quarto que bateu no aro, a bala que não disparou ou a tentativa de compra de um negócio que deu errado. Como quando os fundadores de uma startup chamada Google tentaram vender sua empresa por cerca de 750.000 dólares, mas o comprador achou o preço alto demais. A Alphabet, holding da qual o Google é parte, vale atualmente 2 trilhões de dólares.
Nassim Taleb sugere que nós, seres humanos, nos enganamos ao nos basearmos em relatos incompletos e inconsistentes por acreditar que eles são a pura representação da realidade. Para quem só assiste os melhores momentos, qualquer partida da série B parece um jogaço.
E a história que pode nos ajudar a entender isso começa no dia 10 de março de 1876, quando um cara chamado Alexander Graham Bell, de quem você já deve ter ouvido falar, derramou ácido em si mesmo. Ao perceber a cagada ele chamou ajuda e por acaso gritou na direção do dispositivo que tentava desenvolver. Um dispositivo que eventualmente se chamaria telefone.
Para a sua surpresa, pela primeira vez o protótipo funcionou e seu assistente ouviu a voz de Bell transmitida do outro lado da linha. O inventor rapidamente parou de chorar sobre o ácido derramado e, segundo o que conta a história, fez uma dança de guerra indígena e gritou novamente para o telefone “Deus Salve a Rainha”.
Curiosamente Graham Bell registrou a patente desse invento bem antes de conseguir fazer o aparelho funcionar. Mais curioso ainda é que exatamente no mesmo dia também foi ao escritório de patentes um cara bem menos conhecido. Ele se chamava Elisha Gray e estava lá para registrar a mesmíssima invenção, conforme conta Tim Wu no livro Impérios da Comunicação.
Entre os dois, Bell foi realmente o primeiro a demonstrar um telefone funcional, embora seu aparelho possuísse exatamente as mesmas especificações técnicas descritas na patente de Elisha Gray. Patente esta que um oficial confessou ter mostrado para os advogados de Graham Bell em troca de uma propina de cem dólares, confissão documentada na edição de 22 de maio de 1886 do jornal The New York Times.
Mais ou menos na mesma época outro sujeito, um eletricista chamado Daniel Drawbaugh, chegou a desafiar Graham Bell na justiça. Ele afirmava já possuir um telefone funcionando em sua casa desde 1869, ou seja, sete anos antes.
Nos tribunais ele demonstrou protótipos e apresentou cerca de setenta testemunhas que afirmaram ter visto ou ouvido falar de sua invenção. O caso chegou até à suprema corte norte-americana, onde três ministros concluíram haver evidência irrefutável de que Drawbaugh havia realmente produzido e exibido antes de Graham Bell um instrumento elétrico pelo qual se transmitia a fala.
Infelizmente para o nosso querido eletricista, porém, outros quatro ministros decidiram dar o ganho de causa – e consequentemente os direitos de exploração do recém inventado telefone – para Alexander Graham Bell, mesmo que sob protesto de seus pares que viam esta como uma decisão elitista em favor de um “inventor” contra um “simples técnico”.
Não é difícil pescar nessa história motivos, lisonjeiros ou não, para que Graham Bell tenha conquistado a fama pela criação do telefone e, consequentemente o monopólio da telefonia norte-americana por quase 100 anos. O que não se enxerga tão facilmente é tudo que deixou de acontecer.
Por exemplo: Bastaria um ministro mais simpático a Drawbaugh para que ele ganhasse a causa e aprendêssemos seu nome ao falarmos da invenção do telefone, enquanto Graham Bell se tornaria uma curiosidade histórica.
Além disso, durante aquele período os interesses estavam voltados para aprimorar o telégrafo, meio de comunicação a distância da época, e invenções para transmitir a voz eram pouco encorajadas. Lembra do Elisha Gray? O seu principal financiador era contra essa história de telefone e por isso Gray teve que desenvolver sua pesquisa toda em segredo, não fosse assim é até possível que ele tivesse criado e patenteado o aparelho bem antes de Bell.
A história da ciência é repleta de casos do tipo, que o autor Malcolm Gladwell chamou de “descobertas simultâneas”. Alfred Russel Wallace escreveu um artigo propondo a teoria da seleção natural um ano antes de Charles Darwin publicar “A Origem das Espécies”. Leibniz e Newton desenvolveram os mesmos cálculos independentemente (e brigaram muito por isso). Galileu Galilei, por sorte ou azar ganhou fama pelas mesmas observações feitas por ao menos outras quatro pessoas em 1610.
O fato de alguns destes nomes serem conhecidos atualmente e outros terem sido completamente esquecidos é, até certo ponto, fruto das escolhas destes indivíduos, mas principalmente obra de uma mistura infinita de fatores à qual chamamos simplesmente de acaso.
É esquisito pensar no acaso né? Imaginar que deuses jogam dados. Na aleatoriedade da existência. Talvez você até já tenha começado a supor algumas causas e motivos para estes eventos citados. Não se preocupe, quase todo mundo faz isso.
Nossa mente é uma máquina de criar sentido a partir dos dados que temos a respeito de um assunto, o problema é que lidamos instintivamente com a informação limitada que possuímos como se fosse tudo que há para saber.
Como explica Daniel Kahneman no livro “Rápido e Devagar”: Nosso cérebro não lida muito bem com os “não eventos”, as bolas que batem na trave, a tempestade que atrasou a chegada dos reforços na linha de batalha, todas essas coisas que por pouco não aconteceram. Somos especialmente bons em ignorar solenemente o quanto não sabemos sobre as coisas. E você aí achando que não era bom em nada, hein?
É por isso que acontecimentos observados em retrospecto fazem mais sentido e parecem muito mais previsíveis do que pareciam antes de acontecer.
Essa ilusão com o passado promove uma maior confiança na nossa habilidade de entender o mundo e tentar prever o futuro. Uma tentativa frequentemente frustrada, por deixarmos passar todo o acaso envolvido e nos concentrarmos na narrativa criada em nossa cabeça.
A mente é tão hábil em criar sentido no mundo que quando as coisas fogem do esperado ela se ajusta para acomodar a surpresa. Lembra dos analistas estudados por Philip Tetlock e seu “esquecimento” das previsões equivocadas?
Somos péssimos em remontar estágios passados de conhecimento ou crenças que mudaram. Assim que adotamos uma nova forma de ver o mundo, ou determinada questão, perdemos a habilidade de lembrar como era acreditar em outra coisa. E frequentemente adotamos o “eu já sabia” sobre coisas que a gente na verdade não tinha tanta certeza assim.
Diversos estudos pediram a indivíduos que previssem a probabilidade da ocorrência de certos resultados, como a condenação por assassinato do jogador de futebol americano O.J. Simpson e o impeachment do presidente norte-americano Bill Clinton. Após os eventos os participantes se lembravam de ter estimado probabilidades muito mais próximas dos resultados do que daquelas submetidas no início do estudo.
Isso não é um defeito do cérebro. A ilusão de que o mundo é mais coerente e previsível do que ele realmente é, ajuda a reduzir a ansiedade da incerteza, embora obviamente produza predições vergonhosas.
Apesar disso, há um pesquisador que seguiu acreditando em uma forma de criar análises e predições macroeconômicas e geopolíticas mais precisas sobre a realidade. Esse pesquisador é o próprio Philip Tetlock.
Após envergonhar tantos analistas e especialistas, Tetlock deu início a uma nova pesquisa com predições. O estudo, descrito por Tim Harford em The Data Detective, convidava milhares de indivíduos a acessarem um site e depositarem seu melhor julgamento sobre desfechos de situações que porventura estivessem acompanhando. Coisas como a chance de determinado país declarar a moratória da dívida pública, o resultado de eleições ou a chance de ocorrência de um golpe de estado em algum canto do planeta.
O programa permitia atualizar sua opinião sempre que o usuário quisesse e ao fim do período comparar seus resultados com o dos demais. Entre os mais de vinte mil participantes havia profissionais de análise de inteligência, acadêmicos de áreas diversas e vários palpiteiros completamente amadores. Dentre estes últimos alguns receberam um treinamento básico em estatística, outros formaram grupos, uns tantos receberam informações sobre os assuntos nos quais opinariam e tinha também quem postasse seus palpites completamente isolado dos demais.
Ao comparar os resultados deste imenso número de previsões, os pesquisadores Philip Tetlock, Barbara Mellers e Don Moore descobriram um tipo de pessoa capaz de realizar prognósticos com precisão acima da média.
Se você pensou em gente com QI elevado ou algum tipo de formação, errou, nada disso fez grande diferença.
Por outro lado, um conhecimento específico se mostrou bem útil: Noções básicas de estatística, em especial o conceito de taxa básica, ou taxa de base.
Você talvez se pergunte: Mas que negócio é esse de taxa básica?
Então, imagine que abriu uma nova cafeteria no seu bairro e você tente estimar quanto tempo ela vai durar aberta. Talvez você leve em conta a qualidade do café, a simpatia dos atendentes, o ponto comercial, o movimento das ruas e até o preço do café nos últimos tempos. Mas para conseguir um resultado mais preciso o ideal seria obter um dado amplo, como o tempo médio de vida de uma empresa desse tipo em sua região ou país, este valor é a taxa básica.
Uma boa previsão começa por este número, para só então ajustar de acordo com percepções subjetivas e informações específicas de cada caso.
Outro hábito útil, segundo a pesquisa, é registrar seu palpite e acompanhar seus erros e acertos. Isso ajuda a não se deixar enganar pelas narrativas da nossa memória e sua falsa sensação de entendimento.
O terceiro fator identificado nos melhores palpiteiros é que eles costumavam atualizar seus palpites com frequência, conforme adquiriam novas informações a respeito. Claro que tentar adivinhar o resultado de um jogo aos 38 do segundo tempo é bem mais fácil do que antes do pontapé inicial, mas estes usuários tendiam a acertar mais mesmo se levar em conta apenas seus primeiros palpites. O que sugere que a receptividade a novas evidências é bem útil para os candidatos a Mãe Diná.
Esse traço é muito parecido com o último e talvez mais importante, algo que pode ser chamado de forma grosseira de “ter a mente aberta”. Pessoas que não se apegam a uma única abordagem ou se sentem confortáveis em abandonar antigas visões de mundo à luz de novas evidências tendem a prever melhor o futuro.
Nas palavras do próprio Philip Tetlock, “para os ’Superprevisores’ crenças são hipóteses para serem testadas, não tesouros para serem protegidos”.
Então vamos recapitular: A gente só precisa aprender o básico do básico de estatística, registrar nossos palpites para conferir depois, ficar atento à realidade para atualizar nossas previsões e, claro, ter a mente aberta para mudar nossa visão de mundo. Pronto, agora já podemos nos tornar os profetas do século XXI, certo?
Não exatamente. Mesmo esses “superprevisores” estão longe da perfeição, mas depois de todo esse trabalho, eles pelo menos já conseguem acertar mais do que um Chimpanzé tirando a sorte na moeda.
Tudo isso é bem legal, né e você, assim como eu, provavelmente se julga super-racional e de mente aberta, capaz de mudar de opinião sempre que surgirem evidências convincentes, embora isso geralmente só dure até a gente de fato encontrar uma evidência capaz de destruir o conforto de achar que entendemos, mesmo que só um pouquinho, o mundo.
A incerteza nunca vai ser confortável e a falácia narrativa sempre será o instinto cognitivo mais natural. Criar sentido ao contar histórias é um traço de nossa espécie e fundamento de todas as religiões, além de uma série de linhas de pensamento.
Então ignorar a falácia narrativa e ter em mente nossa incapacidade de fazer previsões com base nas informações que temos não é uma característica nata, mas um exercício, sem garantias de grandes sucessos, no máximo de ser um pouco melhor do que o Polvo Paul, ou o cachorro que prevê os resultados da NBA.
Expectativas afinal, são isso: Projeções da realidade, que por melhor fundamentadas que sejam, sempre serão limitadas à nossa visão de mundo. Talvez a única certeza mesmo é de que essas previsões eventualmente serão frustradas.
Resta o consolo de saber que no fim das contas isso vale também para nossas expectativas mais pessimistas e que essa crença em uma decadência humana ou moral está, provavelmente, tão errada quanto qualquer outro prognóstico.
Como sempre, obrigado pela leitura e até a próxima!
Ah, se puder, me fala aí o que você achou dessa newsletter: